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Lampião chamado de ‘criminoso’: por que filha de cangaceiro está processando autor?

Expedita Ferreira Nunes pede uma indenização de R$ 245 mil e que as próximas edições do livro tenham um texto informativo 'para que os leitores tenham conhecimento de que a versão articulada pelo autor e vendida como realidade não encontra amparo nas pesquisas históricas até hoje realizadas'.
  • Categoria: Geral
  • Publicação: 27/01/2024 12:03

Mais de oito décadas após sua morte, Lampião continua acendendo discussões.

A mais recente envolve Expedita Ferreira Nunes, que é filha de Virgulino Ferreira da Silva com Maria Bonita, e o apresentador Tiago Pavinatto.

Em novembro do ano passado, Expedita, de 92 anos, entrou com um processo contra Pavinatto, motivado pelo mais recente livro dele.

Pavinatto lançou em 2023 Da Silva: A Grande Fake News da Esquerda, que trata a história de Lampião como uma "grande mentira engendrada pelo comunismo brasileiro”, de acordo com a descrição da editora Almedina.

A filha do casal mais famoso do cangaço pede uma indenização de R$ 245 mil e que as próximas edições do livro tenham um texto informativo “para que os leitores tenham conhecimento de que a versão articulada pelo autor e vendida como realidade não encontra amparo nas pesquisas históricas até hoje realizadas”, explica o advogado Alex Daniel, do escritório Cândido Dortas, de Aracaju (SE), que representa Expedita.

Pavinatto aproveitou a exposição do caso e a proximidade da Black Friday para oferecer cupons de desconto a seus seguidores (só no Instagram são 1,5 milhão).

“Era só o que me faltava, a filha de Lampião quer tirar meu livro de circulação”, ele postou em sua conta no X (ex-Twitter).

“Não há qualquer pedido de censura”, rebate o advogado Daniel.

“Não há sequer previsão para julgamento do processo.”

O escritório aguarda para os primeiros meses deste ano o agendamento de uma audiência de conciliação.

“Depois, haverá apresentação da defesa de Pavinatto e da Editora Almedina, produção de provas, audiências, exames periciais, etc”, diz o advogado.

A editora Almedina e Pavinatto, que já disse na internet que não vai se retratar, não responderam aos pedidos de entrevista da BBC News Brasil.

Ataques

Há muitas décadas, historiadores debatem os crimes, o contexto social e as motivações dos cangaceiros.

O livro de Pavinatto não oferece uma nova visão sobre Lampião.

O que é diferente no livro do apresentador, além de um tom mais belicoso, é a escolha editorial de associar Lampião ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores (PT).

O livro se chama "Da Silva" e a capa tem uma mão fazendo o "L", o símbolo da campanha vitoriosa de Lula para a Presidência em 2022 e que, hoje, é muito usado por bolsonaristas para criticar o governo.

No processo contra Pavinatto, o advogado Alex Daniel e sua cliente pedem que sejam suprimidas do livro as "adjetivações excessivas, a exemplo de: ‘notório estuprador da história’, ‘psicopata’, ‘terrorista mercenário’, ‘um dos maiores traficantes de armas pesadas da história do Brasil’, ‘torturador’, ‘ladrão’, ‘assassino’, ‘golpista’, ‘sequestrador’, ‘extorsionário’ etc.”

Na opinião do historiador e pesquisador do tema Vagner Ramos, mestre pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorando na Unicamp, a capa e o título do livro são demonstrações de que o autor e a editora queriam mais mobilizar paixões em torno de Lampião do que analisar fatos.

Ele opina que as "adjetivações excessivas" podem fazer sentido do ponto de vista editorial, quando o intuito for “menos para a construção de uma ‘verdade’ plausível e mais para a formação de uma ‘pós-verdade’ a ser consumida por um público-alvo".

"A diferença ocorre quando a análise sobre o ‘fato’ importa menos do que as emoções que se busca acionar no público", diz.

Alex Daniel diz que não queria que o caso ganhasse muita repercussão, porque, segundo ele, os vários vídeos e postagens de Pavinatto na internet muitas vezes ofendem sua cliente.

"Depois do livro do Pavinatto, passou a existir uma associação dos grupos de extrema-direita, que atacam indistintamente a família, fazem ameaças e disseminam ódio", diz ele.

Tal reação não ocorreu, por exemplo, com outro processo movido por Expedida.

É uma ação contra a Netflix, que lançou em 2022 uma série satírica, chamada O Cangaceiro do Futuro, sobre um homem parecido com o rei do cangaço que viaja no tempo e se encontra com o próprio Lampião.

Por não ter sido consultada e alegando que a Netflix conseguiu mais de 10 milhões de visualizações com a série graças ao uso dos nomes de Lampião e Maria Bonita, a família decidiu processar a gigante do streaming.

A Netflix disse à BBC News Brasil que não comenta o assunto.

O caso está em tramitação no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Também não houve manifestações do tipo que Daniel relata agora com outra ação movida pela família no ano passado, dessa vez contra um motel, que espalhou outdoors no interior de Pernambuco explorando a imagem do casal.

“Maria Bonita, acenda o Lampião”, dizia a propaganda.

Pablo Stolze Gagliano e Rodrigo Moraes, professores de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em um artigo no site Migalhas, explicam que herdeiros têm direito a proteger a imagem de pessoas mortas.

“Existem decisões judiciais sobre utilização de imagem de pessoa falecida por empresa jornalística em nítido caráter sensacionalista, com abuso do direito de informação”, escreveram.

Quando se trata de personalidades históricas, de interesse público, é possível conciliar direitos fundamentais, como de imagem e de liberdade de expressão?

Gagliano e Moraes citam o Enunciado 279 do Conselho da Justiça Federal, que diz que "a proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa".

Nos casos em que os dois direitos colidem, diz o texto, é preciso levar em conta "a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica).